Por que falar da Constituição?

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Há 20 anos, mais precisamente no dia 5 de outubro de 1988, foi promulgada a “Constituição da República Federativa do Brasil” – um “pequeno livro”, porém com um significado imensurável.

Todos nós sabemos da existência deste texto. De fácil acesso, ele pode ser encontrado na internet e até em bancas de jornal. Entretanto, infelizmente, nem todos conhecem (ou pelo menos não valorizam) a sua importância. Assim falou Ricardo Sacco* sobre a importância da consciência política e de uma Constituição estável em um país democrático:

A democracia está consolidada, as instituições estão fortes, a despeito de críticas ao Congresso há consenso de que ruim com ele, pior sem ele. O que é preciso é o exercício consciente do voto e o fim da permissividade com os desvios. Precisamos varrer do mapa a idéia do “rouba mais faz”, a de que todos roubam então é natural roubar e assim por diante. A mudança está nas mãos do povo e a Constituição assegura isso. A mudança começa com a mudança de mentalidade, e esta, com educação pública fundamental e média de qualidade, universal e gratuita. Isso é inclusão e não outras idéias como vemos por aí que na verdade servem para fazer demagogia e tendem a tampar o sol com a peneira.

Outra questão é acabar com a idéia de “constituições personalizadas” para o governo. O sujeito toma posse sabendo da existência dos limites constitucionais e depois vem com a conversa de que a constituição atrapalha a governabilidade. Se ele acha isso não deveria ter se candidatado. A Constituição estava aí antes dele

Fato é que a vida política não se move por modelos ideais, e sim por modelos possíveis. A Constituição é esta aí e ela permite que um partido de índole mais liberal ou um partido trabalhista possa governar com ela, assim como possa servir também ao governo de um partido mais conservador. Isso é o que ela permite quando invoca o pluralismo político e não o monismo político. Cabe à Constituição estabelecer os direitos e valores fundamentais de uma sociedade e deixar o restante para a política. Cada um que chega ao poder quer uma Constituição à sua imagem e semelhança, veja no caso de alguns Estados na América Latina; isso é preocupante.

* Ricardo Ferreira Sacco é Mestre em Direito e Instituições Políticas pela Universidade FUMEC, Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA e Professor Universitário.

Leia abaixo, na íntegra, a entrevista de Ricardo Sacco para o jornal “O Ponto” (jornal laboratório da Universidade FUMEC) sobre os 20 anos da Constituição de 1988:

O PONTO: Bom, primeiramente, qual a sua opinião sobre a utilização da mesma
Constituição durante duas décadas?

RICARDO SACCO: Penso que as constituições foram feitas para durar, eis que são a manifestação da vontade política de um povo feita de forma solene através de uma lei que é superior a todas as outras. Nascem com o objetivo de estruturar um Estado e estabilizar as relações.
As constituições criadas após a Segunda Grande Guerra nasceram com a tendência de conter em seu interior mecanismos de auto-proteção que impedem modificações de preceitos considerados valores imodificáveis, além de possuírem também dispositivos que produzem uma certa dificuldade em se operar emendas, gerando uma rigidez, o que é desejável para evitar que maiorias eventuais possam operar modificações que depois possam até mesmo sair do seu controle. É o caso da Constituição de 1988, que possui a referida rigidez necessária a se preservar para as gerações futuras.
A estabilidade de uma constituição gera estabilidade das instituições por sua vez. Tivemos um total de sete constituições desde 1824. É um número considerável se pensarmos no paradigma daquele Estado que inaugurou a idéia de criar uma constituição – os Estados Unidos da América – que possui a mesma Constituição há mais de 200 anos, mas sete constituições na história não é um exagero extremo. Trocar a Constituição é trocar a estrutura do Estado. Muitas vezes uma constituição democrática sucede uma autoritária e vice versa, e consequentemente, o Estado que dela advém. Não vejo nenhuma necessidade de trocar uma Constituição democrática, pois não sei o que pode vir de tal alteração. Cícero dizia que a história é a professora da vida, portanto, vamos escutá-lo.
A Constituição de 1988, tenho para mim é o maior símbolo de sucesso da transição de um Estado autoritário e intolerante para um Estado democrático de Direito. Veja bem, sob sua proteção realizaram-se cinco eleições presidenciais com voto direto, secreto, universal e sem ameaças ou alterações golpistas de datas. Inegável foi também o debate público amplo, com intensa mobilização e participação popular, havendo ainda alternância de partidos políticos no poder. Não podemos deixar de citar um episódio extremo que foi a cassação de um Presidente da República, sem que fosse gerada qualquer ruptura institucional.
A despeito de criticas a Constituição de 88 cumpre seu papel ao assegurar estabilidade institucional, absorvendo os conflitos políticos dentro do quadro da legalidade pré-estabelecida. Sou um ardoroso defensor de nossa Constituição e de sua manutenção, pois é fruto de séculos de amadurecimento político e muita luta. A simples idéia de um novo poder constituinte originário será uma ruptura com a legalidade, podendo se tornar o “ovo da serpente”. Quero comemorar seus quarenta anos futuramente.

O PONTO: Apesar das alterações ocorridas durante este tempo, o senhor vê alguma falha, ou acha que outras alterações poderiam ser feitas? Quais?

RICARDO SACCO: Há um aspecto na vida brasileira que foi negligenciado nesses 20 anos de Constituição, qual seja a reforma política. Ela é absolutamente necessária. Eu insisto e discuto isso com meus alunos. Vejamos um exemplo: é necessário um debate sobre presidencialismo, dentre outras coisas. É hora de criarmos um modelo imune a crises dramáticas, imune a aventuras autoritárias como as que surgem pela América Latina, além, é claro, de tentar diminuir o fisiologismo exacerbado na relação do executivo com o Congresso.
O sistema presidencialista ao estilo norte-americano implantado na América latina sem os rigorosos controles sociais, incluindo os morais, degenerou-se no presidencialismo imperial latino-americano, que é um desastre. É hora de reformular o sistema presidencialista. Sou a favor de um sistema parlamentarista, na qual o Presidente surge através de uma composição de forças políticas no parlamento. As forças políticas mudaram, muda-se o primeiro-ministro. Há o que eu chamo de um equilíbrio dinâmico que gera uma certa dose de insegurança no chefe do Poder Executivo, pois ele não sabe por quanto tempo estará no cargo. Sem dúvida é melhor do que esse fisiologismo que chega ao ponto de troca de apoio por dinheiro.
O debate é complexo e acho que não seria viável a aceitação popular como o parlamentarismo, como na Alemanha ou na Itália. Uma alternativa poderia ser o modelo francês em que vigora um presidencialismo atenuado ou semi-presidencialismo. Este assunto é muito longo e acabaria tomando conta de toda a entrevista, mas fica lançada a idéia. Isso é importante para tentar acabar com as relações muitas vezes não republicanas entre o Executivo e o Parlamento.

O PONTO: Na sua opinião, as modificações foram significativas para a população? Que fato marcante , envolvendo a Constuição, deve ser lembrado nos 20 anos da mesma?

RICARDO SACCO: Os direitos individuais, incluindo a liberdade de imprensa, os sociais, a preocupação com o meio ambiente, com os direitos coletivos e difusos, são muitas as conquistas que podemos apontar.
Como fato marcante, creio que o impedimento do Presidente Fernando Collor de Mello foi algo dramático e que transcorreu dentro da perfeita legalidade. A Constituição se mostrou apta a regular o que foi uma grave crise institucional. Collor serve muito bem para ilustrar aquilo que falei anteriormente sobre as maiorias eventuais das quais a Constituição deve estar protegida. Vejamos: Collor foi eleito e inicialmente fora adorado, possuía ampla maioria e desfilou como um herói. Aquela mesma maioria e a aceitação popular e o próprio respeito se foram de uma hora para outra. A maioria que o apoiava virou fumaça, desapareceu, e eu pergunto: e se essa maioria eventual tivesse tido oportunidade para produzir modificações irreversíveis? Poderíamos estar em apuros.

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