Memória é como se chama uma menina que na hora de colocar o nome, seus pais, moradores das roças de Eunápolis, se esqueceram do nome que lhes tinham escolhido. Os tabeliães dos cartórios daquela época andavam sempre apressado com tantos livros para organizar, levar de um povoado para outro, enfim. Os pais tinham vindo da roça apenas para registrar a filha. O tabelião muito apressado ficou impaciente olhando os pais tentando lembrar do nome que iam dar para a filhinha. E enquanto os pais discutiam se era Filismina ou Eulália, o tabelião registrou e entregou o documento para os país sem que eles tivesse lembrado do nome.
Analfabetos e muito humildes, até acharam que o tabelião teria descoberto o nome que eles não lembravam. Tabelião era quase um doutor, alguém que conhecia muito, talvez de tanto colocar nome em filho dos outros já soubesse o nome que passava pela cabeça dos pais… assim pensaram. Depois de duas semanas, quando o padre passou no vilarejo e deu-se a batizar, comer bolo de aipim e visitar as crianças, então descobriu que o nome da Filismina ou Eulália – os pais ainda não se lembravam, é que era época de colheita e estavam com outras preocupações – era Memória Devir do Firmamento.
Pois bem, Memória tinha crescido um pouco. Andava próximo das matas do Gravatá vendo o povo roçaliano voltando do trabalho. Ela tinha costume de conversar com uns bichos esquisitos… caiporas, curupiras, tudo quanto é tipo de bicho encantados… mas o que mais gostava era do Sr. Saci, que nunca mais tinha aparecido. Pois bem, um dia quando passeava em busca de seus amigos-bichos-esquisitos viu uma viola caída perto de um pé de Gameleira. Ela conhecia uma viola porque seu pai, ainda que analfabeto e nada versado nas partituras, sabia bater seus dedos naquelas cordas e tirar dali alguns sons que para ela pareciam agradáveis. Sabia ela que Gameleira não é árvore que se passa despercebida. Sabia que esta árvore sempre guardou encantos. Ela se aproximou da viola. Queria conferir, saber se não era um violão, uma rabeca ou mesmo um bandolim. Era de fato uma viola. Como seu pai não deixava ela tocar a viola que ganhara de seu avô… Memória pensou: vou pegar esta viola para poder tocar que nem o papai!
Um passo deu em direção de seu sonho. Veio na cabeça imagens dela sendo aplaudida numa roda ao pé da fogueira por importantes violeiros da região. Outro passo deu olhando fixamente aquela viola da Gameleira. Imaginou-se tocando nas feiras, ganhando uns trocados com os quais compraria umas fitas e até, quem sabe, uma tintura para tingir seu vestido branco de amarelo no final do ano. Mas quando ia dar o derradeiro passo, a viola começou a voar e entrou no bolso de um homem que voltava da roça. Memória estava assustada! Que pode ser isto? Como pode uma viola avuar tão certin e cabê no bolso de um homem?
No outro dia foi ao mesmo lugar. Achou que aquele homem era dono de uma viola mágica. Não contou para os pais com medo de tomar uma bronca – os pais nunca gostam que seus filhos se envolvam com essas magias, mandingas, fantasmas… Avistou na mesma Gameleira uma viola. Seria a mágica viola do dia anterior? Novamente se pôs Memória a andar em direção daquele seu sonho. Dessa vez com passos mais curtos. Um outro homem passava. Notou que não era o mesmo do dia anterior. Desta vez era um preto retinto, como se dizia antigamente. Pensou: um preto retinto não pode ter uma viola mágica, não teria dinheiro para comprar uma! (Aqui pedimos desculpa aos caros leitores pelo preconceito desta criança, acontece que o preconceito é ensinado desde berço, portanto, não culpemos Memória) Feliz apressou-se, quando de repente… tuf, tuf, tuf… a viola voou e parou dentro do bolso no preto retinto. Como pode? Até o preto tem uma viola, mas eu não!
Correu, entrou nas matas correndo procurando o Sr. Saci. No primeiro bambuzal que achou bateu três vezes no bambu, rodopiou que nem um rodamoinho e deu cinco pulinhos de uma perna só, e com a perna direita. Um vento se espalhou pela mata. As folhas do chão se alevantaram num rodopiar digno daquele pretinho de uma perna só. O Sr. Saci deu um susto em Memória com um potente grito: ai ai ai ai aiiiii! Memória assustada ficou aliviada. Sabia que era o preto que tudo sabia das coisas mágicas. E depois de lhe abraçar contou a história que tinha vivido nos últimos dois finais de tarde. O Sr. Saci pulava de um lado para o outro, fumando em seu cachimbo, soltando fumaças para cima e dando suaves rizadas. E depois de um exame cuidadoso das expressões e falas de Memória ele disse: Preciso ver esta viola mágica que voa.
Memória levou o Sr. Saci para a Gameleira, explicou-lhe que não poderiam encostar nem mais um pouco porque a dita voaria. Então o Sr. Saci disse a Memória: Terei que me disfarçar de professor de história. A menina perguntou, então: Mas por que de professor de história? Aquele encantado, preto e pulador de uma perna, respondeu: Uhmmm… bem… professores de história não são bons com essas coisas. Nem tocam, nem gostam destes instrumentos arcaicos. Caso ela esteja fugindo com medo de ser tocada, certamente irá me ignorar com este disfarce.
Lá foi o Sr. Saci. Ele tinha sacado de um redemoinho um livro de Marx, uns óculos, alguns mapas antigos e uma coleção de discos da década de 1970 – isto para não falar que trocou seu capuz por um gorrinho e vestiu uma camisa com a foto de Chê. E foi. Realmente ele se aproximou bastante da viola, não tanto para tocá-la. E durante uns 15 minutos ficou ali como se estivesse conversando com a viola mágica. Memória ficava impaciente, mas já sonhando tocando na feira de Gabiarra em cima de uma caminhonete e mostrando sua viola avuadora – apesar de celeiro de muitos artistas da região, aquela vila nunca tinha visto uma viola avuadora!.
Quando pensa que não, volta o Sr. Saci. Ele pula de um lado, pula de outro… abandona o traje de professor de história (a camisa do Chê até que tinha caído bem, mas ele prefere ficar sem camisa) e fala: Bem, menina, trata-se de uma viola de bolso, não sabe? Memória assustada pergunta: Uma viola de bolso? O que é isso? O Sr. Saci fez um esforço enorme. É como se procurasse as melhores palavras para explicar algo complicado-demais-para-explicar para uma criança… Bem… bem… como posso explicar… humm… uma viola de bolso é uma viola que não quer ser deixada no canto, largada às aranhas. É uma viola que quer ser tocada… mas não apenas tocada com as mãos. É com o coração, com a cabeça! Ela não aceita apenas músicas para as plateias, ela só se deixa ser tocada por pessoas que ao tocá-la mudem as coisas ruins em sua volta. Que mude o próprio jeito de tocar, não a música, mas o mundo. Você entende?
Memória não respondeu. Ficou pensativa. Não sabia o que ia falar… preferiu não falar nada. É que o Sr. Saci não é apenas aquele malandro das histórias de quadrinho, ele também é muito sério de vez em quando. Um silencio ficou no ar por um minuto. Memória então disse: eu quero tocar a viola de bolso, vou fazer umas cantadas que vão mudar todas as coisas do mundo. Eu até andava pensando que Deus criou tudo marromenos certo, mas de uns tempos pra cá as coisas andavam meio estranhas. Acho que é porque tem gente demais no mundo. Deus deve estar muito ocupado agora para ficar olhando para este país. Então eu pego a viola de bolso e vou consertando algumas coisas por ai. O Sr. Saci disse: Então vá lá, pegue.
A menina deu seus passos bem vagarosamente, chegou próximo àquele mágico instrumento e a viola pulou para o bolso de Memória. Desde então Memória e a Viola de Bolso vem voando e tocando, não música, mas o mundo. É uma cerca que quebrou, uma porta que emperrou, uma ponte que caiu… Memória e Viola vão dando a ajudinha que podem… e quando sobra um tempo… bem… quando sobra um tempo elas vão tocando um pouquinho de música nas feiras. É… mas só um pouquinho, porque Memória, como seus pais, anda sempre meio esquecida e não lembra das letras direito e acaba só tocando músicas que inventa na hora. A parte boa é que a menina, hoje mais-maior-de-grande, já aprendeu que quando vê uma viola perto de um pé de Gameleira… bem… quando ver… antes de pegar, é sempre bom chamar o Sr. Saci.
Toc. Toc. Toc. Cadê o Saci?
(adaptado de Escutar o amarelo – o calendário e a geografia da diferença, SubComandante Marcos)
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