Por ocasião do aniversário de nascimento de Eunápolis( 05 de novembro), estamos publicando aqui alguns textos sobre a cidade, escritos por Sumário Santana, ativista cutural do Viola de Bolso.
HOSTILIDADE OU HOSPITALIDADE
o que guarda uma cidade?
Faça de conta que você foi convidada a coordenar uma pesquisa informal nas ruas de Eunápolis, em que as únicas perguntas são:
– Você gosta da cidade? – O que você acha de Eunápolis? – você nasceu aqui ou veio de onde?
Na primeira pergunta as alternativas de respostas são três: a) gosto; b) não gosto e c) Mais ou menos. Como “mais ou menos” não é resposta e há sempre uma tendência pra que a frase fique no negativo(as pessoas sempre torcem o nariz, quando respondem ‘mais ou menos’), então os números vão para a resposta ‘b’.
Juntando as respostas de b e c, o resultado daria uma boa reflexão.
Já a segunda pergunta é subjetiva e permite que o cidadão trilhe uma retórica que somente vai expressar o sentimento e o seu estado de espírito do momento(se ele está num barzinho com a namorada, a resposta ganha em qualidade, ou se ela está no hospital perto de ganhar nenê, a resposta pode ser confusa; se é um sujeito que a responde numa fila em busca de emprego, advinha-se qual seja a resposta. Ou seja, as respostas variam, “depende”).
Voltando à terceira questão, fica a dúvida se a intenção seria mensurar dados estatísticos de uma linha do tempo dos eunapolitanos ou o sentimento de pertença(o que é difícil, mensurar sentimento) ou seria por em xeque se Eunápolis é mesmo formada por maioria de baianos ou um misto de capixabas, mineiros, dentre outros e, em ultima instancia, os eunapolitanos. Muitos podem argumentar que nascer em um lugar, cidade ou campo, não confere ao sujeito o sentimento do gostar, pertencer ou lutar pelo lugar em que nasceu. Às vezes um acontecimento(bom ou ruim), faz que a pessoa goste ou tenha ressentimentos daquele lugar. Morar, trabalhar e viver em uma cidade talvez faça a diferença. Então, qual o motivo, necessidade ou prazer de viver numa cidade? O que faz você se identificar com a cidade ou, em que ela se identifica com você?
Em 2014 uma secretaria municipal na gestão Neto Guerrieri insistiu na realização de um concurso em que o incentivo era premiar quem sugerisse uma(melhor) ‘marca’ que fosse a cara da cidade e que representasse a identidade eunapolitana. Para não ficar na discussão sobre essa ideia equivocada de se ter uma marca, porque marca quem tem é produto e definitivamente não somos(a cidade não é) um produto, nós podemos refletir sobre o pertencimento e os motivos do estranhamento, com a cidade, passando pela noção de identidade, modelo de desenvolvimento, hegemonia e contra-hegemonia nos poderes locais.
Afinal o concurso não teve desfecho, pelo simples fato(ou complexo?) de que uma marca, uma identidade ou o pertencimento a uma cidade não nasce da noite pro dia nem será fruto de concursos. E se ao final o concurso premiou alguém, o resultado não conferiu à cidade o que tanto os promotores do concurso desejavam, que era denotar uma marca definitiva para Eunápolis.
Identidades ou pertencimento?
A ideia de afirmar a identidade de uma cidade é controversa, dada a diversidade cultural e social do nosso povo e os detalhes de urbanidade que a torna imensa, diluída e intensa, no vai e vem das horas, entre acontecimentos, fenômenos e destinos. Tem cidade que parece um grande mercado; tem cidade que parece um zoológico; tem cidade que parece um presídio, outra, um plantel de venda de veículos, já outra parece um grande hospital e outra uma universidade… e por aí vai.
Pro caso de Eunápolis, podemos até falar em identidades, menos de marca ou de um símbolo que identifique a cidade, porque essas coisas em geral tendem a serem falsas e servirem apenas para manipulações do poder ou do grupo hegemônico do momento.
As identidades locais vem da memória e do valor que a cidade acumula e guarda de sua trajetória histórica, de sua formação arquitetônica, sua paisagem, dos relatos dos primeiros moradores, do nome das ruas, patrimônios materiais e imateriais de seu tempo. Ela pode estar na herança dos que vieram de longe e da persistência dos que aqui construíram as suas vidas. É na memória coletiva e fruto do conjunto dos relatos dos moradores, novos e antigos, que podemos perceber o tecido social da cidade, de onde vem seus valores e comportamentos, resultado do trabalho, das celebrações festivas, das relações sociais e das crenças no futuro, a partir daquele lugar que cada um escolheu como seu.
Gostar de uma cidade depende de inúmeros fatores; não gostar, só depende de um único acontecimento trágico, desagradável, opressivo, humilhante e vergonhoso que possa acontecer. Mas a resposta que seja, de um indivíduo sobre a sua cidade de uma pesquisa ou diagnóstico, não denota o clima de amor, dissabor ou estranhamento, nem desvela a cara da cidade, apesar dela fazer parte e, cada opinião revelar o que lá na analise final vai constatar o que pretendemos saber e informar à sociedade local, que é o medo generalizado, a angústia por não entender os fenômenos que gera as desigualdades, a sensação de insegurança, mesmo estando numa casa de muro alto, a dor por não ter sido atendida em uma repartição pública, a agressão e a violência do preconceito, a falta de cuidados com os idosos e a falta de espaços para o lazer das crianças, a invasão dos automóveis em detrimento dos cidadãos, a sensação de estar num presídio, num mercadão ou num labirinto.
A saudade de um lugar tranquilo e a luta cotidiana para enfrentar as dificuldades de se conseguir trabalho e alimento, educação escolar e saúde, são fatores que tiram o sono da maioria, em qualquer cidade que seja. O temor aparente fica real nos resultados de uma pesquisa sobre (in)segurança, acessibilidade ou atendimentos básicos. Já a ausência de espaços de lazer e de cultura, de escolas de educação integral, a falta de largos e de praças púbicas é citação complementar. O que seria inerente é deixado em segundo plano, parece informar as pesquisas.
Eunápolis é uma cidade conservadora, dizem muitos. No campo da política eleitoral, os candidatos da direita sempre tiveram a maioria dos votos, muito embora fruto da velha prática eleitoreira de compra e venda de votos, barganha de cargos e privilégios. No campo da política pública e cidadania, os avanços sociais são incipientes e põe em dúvida a garantia dos direitos, sem contar que as pessoas não se sentem levadas à participação nos espaços de decisão em grupos, como os sindicatos, comunidades e assembleias de decisão barriais ou associações temáticas, que vá gerar lutas e processar mudanças das realidades. Essa desesperança tem explicação sociológica, quando a maioria transfere as suas responsabilidades ou problemas e destinos ao outro ou ao poder constituído; No campo dos comportamentos e valores individuais, nas questões de gênero, a cidade é muito conservadora, torcendo o nariz para comunidades LGBT, para grupos indígenas, grupos de juventude, comunidades de terreiros e grupos culturais diversos.
A cidade chega a ser hostil com estes segmentos. Manifestações de insultos ou violência direta contra negros e pobres são constantes em bairros, em escolas, no comércio local e em hospitais.
A polícia prende, condena e executa negros jovens e perifanos, para depois perguntar quem é e o que fez ou fazem. O jovem que é preso, sem ou com condenação, é um exilado de si mesmo e a sua condenação já foi vaticinada pela escola do mundo pelo avesso, na medida em que sofreu dentro de sua casa a violência e depois viver no mundo lá fora a guerra cotidiana pela sobrevivência. Em desatino, a experiência carcerária vai torná-lo cada vez mais violento, desumano e sem futuro. O jovem que se arrepende de algum delito, poucas ou nenhuma chance tem de se redimir, uma vez que a ele é negada qualquer alternativa de vida, emprego ou educação. Se tiver sorte, no mínimo ele vai para a igreja ou se auto exila em casas de recuperação administradas por evangélicos. O numero de jovens mortos em Eunápolis é alarmante! Em sua maioria são negros pobres e muito jovens, levados ao envolvimento com o tráfico de drogas e assaltos, expulsos da escola e fugidos de suas casas. Os dados da Unicef divulgados em fim de outubro/17 revelam essa realidade.
A identidade e a altivez deu lugar à estatística, aos números dos delitos, dos crimes e da morte.
A juventude não é valorizada em sua dimensão criativa, libertária e, sua diversidade de opiniões e projetos não são levados em consideração. A administração local não tem nem uma ideia do que realizar ou propor para mudar essa realidade. Talvez lhe falte capacidade ou interesse.
Em geral, o poder local tenta dirigir, determinar o caminho da juventude, reprimindo, cerceando manifestações, não apoiando nem gerando programas de estímulo à cultura e à criação, próprios da juventude. Aliás, programas culturais advindos do estado não existem, restando apenas os campos de várzea ou os bares e esquinas de trafico de drogas, infelizmente. A periferia é algo que a sociedade local e as autoridades constituídas não reconhecem, nem como parte geográfica da cidade, nem como fruto do fenômeno sociológico do progresso e modelo de desenvolvimento que defendem. “Algo”, no sentido de não-lugar, como se a periferia tivesse surgido do nada, não fosse(ou não é) essa parte fundamental da cidade, inclusive pela sua força criativa da juventude, coisas que os órgãos competentes não querem enxergar.
As Igrejas e o deus monetário
Foi observado que nos últimos anos no país e em Eunápolis, houve uma proliferação de igrejas pentecostais, fundamentalistas, muito embora a maioria tenha a ausência de conhecimento ou entendimento histórico sobre os seus fundamentos. Isso também não é à toa, é resposta ou portais de desespero fragilidade e falta de alternativas sociais.
Essa proliferação das igrejas evangélicas atingiu as escolas, lamentavelmente. É possível ver nas escolas, a prática de ritos de orações enfadonhas, que entediam a desestimulam os alunos nos seus estudos. – “A escola às vezes parece a igreja da diretora”, dizem alguns. Tal situação já nos permite avaliar antecipadamente como tem sido trabalhado os conteúdos nas escolas municipais e sob que prisma o ensino/aprendizado é posto em prática.
Os terreiros de candomblé são vítimas de constantes ataques verbais e muitos sofrem diretamente ameaças ou agressão a seus templos e suas expressões de fé.
A Câmara de Vereadores de Eunápolis é o retrato fiel de uma sociedade conservadora e patriarcal. Olhar para a bancada de vereadores de Eunápolis nos permite constatar a degradação dessa instituição que legisla em nosso nome e que remotamente teria o papel de defender os nossos interesses. São 17 homens pendurados em seus umbigos monetários, atropelando as próprias leis que criaram ou copiaram. Infelizmente ali nada mais é do que o espelho do que somos, já que foram os votos do povo que os elegeram. Eis Eunápolis.
A pergunta não é: “quem é Eunápolis” e sim “como é Eunápolis”, essa é a questão da identidade.
O que motivou esse texto foi justamente a afirmação de um jovem que, em uma visita recente à cidade(após ter morado aqui 05 anos), foi embora com a certeza que “Eunápolis é uma cidade hostil”, afirmou. Disse isso pelos acontecimentos que presenciou e que vivenciou, acontecimentos de opressão, agressão direta e preconceito declarado contra os moradores, pobres, negros, jovens estudantes, sobretudo gente das periferias, como ele. O seu principal relato vem de suas experiências no trabalho e na escola pública estadual.
Como temos ouvido isso de outras pessoas, que a cidade é preconceituosa, hostil e conservadora! Que Eunápolis não pertence à Bahia, que a cidade só tem aventureiros e empresários que só querem sugar a cidade, dizem os relatos. Gostaríamos de não concordar com isso.
Podemos dizer que a cidade necessita de mais humanidade e de respeito à sua diversidade, de mais atenção do poder público e dos órgãos competentes. Sobretudo, a cidade precisa que seus moradores em suas comunidades, pensem mais sobre cada lugar em que convive, seja na igreja, no campo de várzea, no escritório ou na praça, para ajudar na prática a fazer da cidade, o seu lugar.
E que em cada um desses espaços, tenha lugar a esperança.
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