Quem sequestrou o carnaval de Eunápolis?
(pag. 96, do capitulo II da obra “Culturas e territórios semoventes”, a ser publicado).
(intervalo de improviso):
Em virtude de tempo e espaço, apresento aqui para os mais novos e também para as pessoas que não conhecem a história de Eunápolis, um resumo de um estudo nosso sobre o impacto do turismo nas culturas locais, com foco em cidades da chamada ‘costa do descobrimento’, principalmente na cidade de Eunápolis.
O texto abaixo foi pinçado do livro“Culturas e territórios semoventes”, no capítulo II, breve análise sobre ‘o sumiço do carnaval de Eunápolis’, em que relato na primeira pessoa, o cenário da época, um olhar particular, de quem viveu momentos e ouviu de pessoas sobre:
“O ano era 1970, um fevereiro efervescente e um carnaval de bailes e de rua. Assim como em várias cidades do Brasil e da Bahia, Eunápolis tinha um carnaval de alegria e ajuntamento de famílias, de jovens, de blocos afro, escolas de samba, de cordões de caboclos, de nagôs, de uma diversidade de caretas, de mascarados nas ruas da cidade. No clube da cidade, os bailes animados pelas marchinhas, reuniam foliões e fantasias. Em 1973 pude vivenciar isso, com gente conhecida nossa, com amigos e parentes. Os bailes noturnos no Clube social ali na rua Joana Angélica, reuniam a sociedade eunapolitana ao som das bandas de sopro e percussão, entre o cheiro de lança perfume, alegorias e muita serpentina. Tinha 10 anos na época, mas guardo na memória o som das bandas(chamava-se ‘conjunto musical’) e o coro espontâneo das pessoas, derramando alegria.
Mesmo sendo os anos difíceis da ditadura, carnaval era carnaval.”
(…) Sobre o contexto:
A década de 1980 vai marcar mudanças profundas nas cidades do sul baiano, pois o governo decidira implantar um modelo de desenvolvimento com base no turismo de praias(cidades do litoral) e do monocultivo de eucalipto(cidades do interior), após anos de agressão à mata atlântica. Essa decisão seguiu um plano nefasto, marcado pelo desmatamento da mata atlântica e da expansão da agropecuária; pelos conflitos agrários, ou pior: pela violência com os pequenos agricultores; pelo leiloamento e entrega dos territórios indígenas; pelo êxodo rural, pela inchaço das cidades, pela fragilização das culturas locais e ameaça aos seus ciclos de celebrações; pela violência urbana e degradação do patrimônio arquitetônico e cultural das cidades, além da segregação de jovens pretos e do surgimento do fenômeno de trabalhos análogos à escravidão.
É na década de 1980 que o carnaval de rua de Eunápolis desaparece de vez e, aos poucos, o Clube social deixa de realizar os seus bailes, é desativado, fica em ruínas, quando na década de 1990, o patrimônio coletivo1 é vendido à revelia, para um empresário local.
As micaretas – no conjunto de implantação da indústria cultural nessas cidades baianas -, são incentivadas e ocorrem sem muita periodicidade em Eunápolis, quando então, vai perdendo força e também some do calendário das festas locais. Na verdade, a festa é meio que ‘sem sentido’ e claramente satisfaz apenas ao grupo de empresários e políticos detentores da tecnologia de som, de comunicação, além dos empresários do turismo, da bebida e do ramo de hotelaria, pois o evento exige uma estrutura a cada ano mais sofisticada, se resume às apresentações de bandas no trio elétrico e concentra cada vez mais, os lucros em poucas mãos. As contratações musicais também são duvidosas e a imposição de ritmos e sucessos musicais não são assim, tão atraentes à população, apesar de satisfazer aos empresários do ramo.
Eunápolis no entroncamento da aventura
A cidade quando surgiu, era um povoado no meio da estrada, servindo como pouso dos viajantes e, quem chegava ao local, eram denominados de ‘aventureiros’, por ser uma terra sem lei e sem estrutura, um entroncamento e lugar de parada para quem ia às romarias de Porto Seguro.
Mas entre 1970( com inauguração da BR 101) até meados de 1980, uma década portanto, Eunápolis recebe novos moradores, vindo do norte do Espírito Santo e mais uma leva de famílias mineiras(os primeiros grupos de mineiros que povoam a cidade, vieram em sua maioria, do Vale do Jequitinhonha, por volta de 1950); Capixabas recriam o modo de trabalho, já que a atividade principal é a extração de madeira da mata atlântica, enquanto o comércio urbano de atacado e varejo se evolui, além dos serviços de oficinas mecânicas, alfaiataria, padaria e raríssimos hotéis. Mas o crescimento é veloz e, já no final da década de 1980, os serviços, as lojas, os hotéis e comércio em geral, haviam triplicado as suas ofertas, movimentação em que a cidade consolida uma sociedade austera, conservadora e ensimesmada. O antigo entroncamento dá lugar a uma cidade de novos investimentos e uma sociedade fechada, que, aos poucos é testemunha do surgimento dos bairros populosos e sua gente alegre, trabalhadora e dada a festejos e celebrações que alia fé católica, culto aos orixás e ativa presença em festas como o carnaval.
Os investimentos públicos são ausentes, apesar de o povoado ganhar em 1987, o status de município, com um amplo território. Incrementos da administração municipal significativos somente vão ocorrer a partir de 1990 e se intensifica após o ano 2000, com a mudança de governo em 2003.
Até o ano 2000, o ‘carlismo’, como era chamado o movimento político exclusivista liderado por Antônio Carlos Magalhães(ACM) e a sua família, mandava na Bahia, em detrimento da população, que sofria exploração e vivia a duras penas. Foi sob o comando de ACM, a partir de 1970 em diante, que o sul da Bahia sofreu espoliação e muita privação, segregação, depredação de seus patrimônios naturais e culturais, tudo isso, com a conivência de autoridades municipais, de agentes públicos no judiciário e no legislativo estadual.
Mesmo nestes tempos difíceis, o carnaval acontecia nas cidades da Bahia. Em 1980 os trios de Armandinho e Morais Moreira já eram velhos conhecidos e o axé de Luiz Caldas dominava o cenário musical do carnaval baiano. O cenário político ainda era de muita repressão e exclusão.
Foi neste contexto turbulento que as autoridades do estado brasileiro, no caso da Bahia, os mandantes do governo estadual decidiram por instrumentalizar o Carnaval, criar um modelo de diversão e entretenimento que reunisse a indústria da bebida, da hotelaria, do transporte e da gastronomia, para ampliar poder, lucros e fama. O trio elétrico que servia ao carnaval, virou palco de campanhas eleitorais e invadiu até as festas juninas.
Carnaval de rua ou o quê?
O carnaval ‘fora de época’ é a mina de ouro que vai alimentar o tráfico de influência e encher as burras de dinheiro de alguns capitalistas, deputados empresários, secretários de turismo e prefeitos, formando um elo de riqueza condensado em poucas figuras e gerando uma cadeia de trabalhos temporários nem sempre inclusivos nem sempre seguros, nem sempre geradores de renda para os pequenos. Parece inacreditável, mas os setores do turismo, principalmente as pessoas do governo da época e de suas empresas, montaram um sistema planificado com agenda, cidade por cidade, empresa por empresa, rádio por rádio, até artistas, a serem beneficiados, com um mapa em que mostrava quais dos trios elétricos estavam pré definidos para tocar e, quais eram os seus artistas, também devidamente acertados para as cidades e os eventos.
Assim se definiu: Carnaval antecipado em Itabuna e em Cabrália; Carnaval prologado em Porto Seguro; Micareta em Feira de Santana e em Eunápolis, em Teixeira de Freitas, bem como em outras cidades, parte desse plano bem traçado para satisfazer a ganância dos produtores e donos das empresas. Além disso, a invenção do carnaval fora de época, e as micaretas, davam a essas empresas a possibilidade de fazer que os trios elétricos e os artistas pudessem organizar uma agenda de suas apresentações(valor, local, dia e hora, pois afinal, os artistas não são onipresentes e não poderiam estar em todos os carnavais ao mesmo tempo), monopolizando assim, o entretenimento detendo a agenda do ano inteiro para si, comandando as festas populares, antes abertas ao público nas ruas e avenidas, agora fechadas em ‘cordões de isolamento’, em abadás caríssimos e com o conjunto de serviços ofertados(hotel, bebidas e comidas, por exemplo), que passa a ser antecipadamente definidas pelas empresas e seus agentes do lucro.
Como visto, a prática anterior, das cidades fazendo os seus carnavais de costumes, na data “oficial” é manipulada, quando muitas cidades deixam de realizar a festa popular, e o carnaval é suprimido do calendário local(diversos argumentos das autoridades locais são utilizados para isso ocorrer2).
Como se não bastasse esse monopólio estabelecido pelo sistema articulado no carnaval(empresas de bebidas, hotelaria, transporte e gastronomia), o plano de criar as festas envolvendo os cantores em todos os momentos e festejos ganhou força e se consolidou, até chegar ao absurdo de ver a participação de artistas do axé, de bandas de carnaval, de trios elétricos em pleno São João nas cidades do interior(!). Ficou aberta assim, a intenção comercial do governo e das empresas, com a nítida constatação desse plano premeditado de extinguir o carnaval(a data ‘oficial’) de cidades do interior, como Eunápolis, Guaratinga, Itabela, Itamaraju, Teixeira de Freitas, Medeiros Neto, só pra citar algumas…para em seguida, implantar a ideia das micaretas e, por seu turno, impor arbitrariamente, a presença dos trios elétricos(esse equipamento bonito do carnaval), até nas festas juninas das cidades!
O Pedrão em Eunápolis e o São João elétrico em Porto Seguro, são dois eventos que descaracterizam de um vez só, o carnaval e a festa junina, em nome do lucro e da ascensão política eleitoreira.
O leitor pode muito bem pensar que estamos exagerando ou inventando uma situação que não existiu, mas o fenômeno foi tão articulado e em um contexto tão fragilizado socialmente, que as manifestações culturais populares foi perdendo força, dada as intersecções de suas práticas.
Os ciclos de trabalho e celebrações dos populares teve mudanças significativas: se antes a prática de agricultura familiar, de pesca e de comercio baseado na troca, eram predominantes, eram garantidoras de futuro e articulavam trabalho, festa e pão, agora, a partir da década de 1980, a mão de obra servia às serrarias e oficinas mecânicas, além de parte do comércio crescente das cidades, a exemplo de Eunápolis.
A chegada da (suposta) modernidade vai mudar as relações de trabalho, vai intensificar a utilização e exploração da floresta, vai remodelar o conceito de urbano e mexer com as expressões culturais3. O trabalho continua como mão de obra barata, a festa perde força e o pão fica escasso, gerando fragilidade social, perda de vida comunitária e intermitências prologadas nas celebrações de fé e de festa. Uma dessas mudanças analisadas aqui, é o sumiço repentino(não gradativo) do Carnaval de Eunápolis.
Inspirados e provocados pela realidade eunapolitana, nos perguntamos, quem sequestrou o carnaval de Eunápolis?
Sabemos que o carnaval é uma festa popular e, em muitos lugares, de caráter espontâneo, sem aquela produção que marca as escolas de samba ou os blocos mais famosos de hoje em dia. A festa reúne a massa, como diz o poeta. Os trios elétricos – inventados por dois baianos -, são uma das expressões do festejo que ao longo dos anos se sofisticaram, da velha fubica de Dodô e Osmar até os trios elétricos atuais, de arquitetura moderna e engenharia sonora de dar inveja, com muita luz, elevador, sala vip para os convidados especiais do artista ou banda. Mas o povo pula o carnaval na rua, na praça, em seus bairros ou em seus salões de festa.
Mas falar de carnaval assim, é generalizar, mesmo porque ele é plural e diverso e segue os rito da tradição cristã, a celebração do entrudo, essa palavra estranha que denomina os três dias de folia que antecede a quaresma. No campo específico das expressões culturais que ‘brincam’ o carnaval, os blocos ou grupos afros, os chamados cordões de caboclos e as escolas de samba, tem relações profundas com o candomblé e o culto aos orixás, portanto, são comunidades culturais alimentadas pela ancestralidade e seguem reverenciando seus guias, orientados pela africanidade e religiões fincadas nos terreiros, ou seja, as suas atividades vão para além do carnaval, com um calendário anual cheio de celebrações, oferendas aos orixás e as festas de iniciação na casa – quando é o caso – cumprindo as obrigações que o santo orienta. Essas comunidades culturais sempre mantiveram em seu calendário, o carnaval, quando organizam os seus blocos ou cordões e invadem as ruas e praças, com muita alegria e ensinamentos. Já as Escolas de samba, termo criado por Ismael Silva nos idos de 1930(livro “Desde que o samba é samba”, Ed. Planeta, 2012), reúnem os amantes do samba, com uma característica bem forte, com surdos e graves na marcação, e que acostumamos a chamar de ‘sambão’, aqui no interior do sul da Bahia e no Rio de Janeiro.
As escolas de samba do Rio de Janeiro evoluíram em produção e estrutura, num misto de protagonismo comunitário e indústria cultural.
Foram esses coletivos culturais que, inexplicavelmente, desapareceram das ruas de Eunápolis.
Recolheram-se em suas casas de rezas, em suas comunidades periféricas e guardam até hoje a memória do que foi a presença de seus ancestrais, de seus avós e bisavós na festa popular do carnaval da cidade.
Assim foi com o cordão de caboclo de dona Evanir, no gusmão.
Assim foi com o bloco de samba do mestre “Caiu do céu”
Assim foi com o cordão e bloco afro de mãe Luziene(mãe Luziene continua viva e com o terreiro em plena atividade no bairro Juca Rosa).
Assim foi com os foliões mascarados na cidade, chamados de “caretas”, famosos por suas máscaras criativas e interação com o público, de pura diversão e irreverência.
A memória permanece viva e a ligação ancestral também.
Demonstrando que o carnaval é uma celebração ancestral.
Notas:

1O Clube Social de Eunápolis era uma sociedade autônoma das famílias locais, que o mantinha financeiramente. Com o crescimento da cidade e novas alternativas de entretenimento, o Clube perdeu importância social, sendo abandonado. Porém, um grupo de pessoas decidiu à revelia, vender a um empresário local(também associado).
2Prefeitos e outras autoridades(alguns evangélicos), argumentam que a violência é motivo; outros dizem que a prefeitura não tem recursos, etc.
3O gov. estad. fez um “Plano do Distrito Industrial”, com sede em Itabela, com um ante projeto para um “Complexo Madeireiro Integrado para o aproveitamento de reservas florestais do extremo sul da Bahia”(Industrial Consult/Jun de 1972). Um livro com o Plano foi publicado, sem data nem referencias(exemplar na Biblioteca do Viola de Bolso.
Deixe uma resposta