PONTOS DE CULTURA SÃO AUTÔNOMOS

A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM
OS PONTOS DE CULTURA, A CERTIFICAÇÃO E O DESAFIO DA AUTONOMIA DO MOVIMENTO DOS PONTOS DE CULTURA

“quem vai contar a nossa história,
se disseram que estamos mudos, e sem saber, acreditamos nisso?
Alguém arrisca rasgar a mordaça?”

dias desses falei sobre a estagnação do movimento dos Pontos de Cultura na Bahia e não me fiz compreender exatamente sobre o tema. Sem problemas, porque a reflexão é permanente e volta e meia, falamos sobre o assunto.
Resta de fato, separar as coisas e os seus processos históricos, pro caso em questão.
Sendo um dos fatores essenciais da existência do movimento dos Pontos de Cultura, ao que chamamos de “articulação em redes”, com o seu caráter autônomo e diverso, democrático e de cidadania cultural, representativo e fincado nos parâmetros da Cultura Viva, no momento, fico em dúvida, se estamos correndo o risco de deixar de existir, enquanto um movimento, desgarrado dos governos e com a sua potência criativa, como são os Pontos de Cultura.
Por isso há que entendermos as diferenças: Pontos de Cultura são as suas histórias e lutas de encantamento e resistência; Já o movimento organizado(com representações, redes de articulação e comunicação, dimensão geopolítica), é a materialidade histórica de envergadura política, contra-hegemônica e necessária, para manter acesa o diálogo, a tessitura da rede e a perspectiva ampliada dos direitos culturais. É a Cultura viva.
Por que esse arrefecimento do movimento no Brasil, tão afetado na Bahia? O ‘por quê’ talvez seja a pergunta, mas a indagação sobre o que tem levado a isso acontecer, também merece atenção.
Primeiro é preciso ter claro que os Pontos de Cultura são, pela própria condição histórica social, grupos comunitários que existem em torno de sua trajetória identitária, seus pertencimentos culturais, sua diversidade de atuação no lugar e no tempo dado; Mas eles não são por si só, por mais que sobrevivam de suas lutas e trajetória em determinado lugar e tempo, suas condições de resistência e expressão cultural se conectam com a realidade histórica e dialoga com as diferenças, esperanças, conflitos, seus contrários e seus comuns.
Como disse Célio Turino, “Os Pontos de Cultura não são para as pessoas, os Pontos de Cultura são as pessoas”.
Mas por que os Pontos de Cultura, esse fenômeno que tem crescido na Bahia, esparramados nos territórios de norte a sul do estado, estão ilhados, ensimesmados e ao mesmo tempo ativos em seus redutos?
Entre os anos de 2010 a 2015, a articulação em rede, os encontros, (as Teias estaduais), as reuniões de coordenação da rede, os diálogos com os governos estaduais e municipais, etc, davam o tom e mostrava o tamanho do desafio de construção dos direitos culturais e do Cultura Viva.

Esse movimento intenso e vivo regava, alimentava, animava os Pontos de Cultura em seus locais mais distantes e se fortalecia, enquanto um movimento que representava essa diversidade e riqueza cultural baiana. Assim era no Brasil, uns mais animados, outros em processo de construção de suas articulações, mas eram(e são) os Pontos de Cultura articulados, com seus jeitos próprios e as suas condições de sempre: luta, resistência, dificuldades e muita vontade de fazer a cultura viva. Uma teia diversa e articulada, muito embora naquele momento, a comunicação em tempo real(virtual) ainda nem tinha essa intensidade como hoje.

No âmbito nacional, foram realizadas cinco edições do encontro: Teia 2006 – Venha Se Ver e Ser Visto, São Paulo (SP), Teia 2007 – Tudo de Todos, Belo Horizonte (MG), TEIA 2008 – Iguais na Diferença, Brasília (DF), TEIA 2010: Tambores Digitais, Fortaleza (CE) e a Teia Nacional da Diversidade 2014, Natal (RN). Em todas as etapas nacionais foram realizadas as TEIAS Estaduais, encontros para preparação e envolvimento da sociedade civil participante.

Se as pessoas não fazem as perguntas, a própria história e seus registros que demonstram erros e acertos, o acúmulo e a riqueza da experiência, nos perguntam:

  • Por que deixou de existir o movimento em rede dos Pontos de Cultura na Bahia?
    Por que os Pontos de Cultura, que na Bahia aumentou em quantidade de grupos, coletivos e comunidades auto-declaradas como Pontos de Cultura, mesmo com esse aumento e com essas condições de articulação, comunicação e compreensão da cultura nos dias atuais, por que o movimento perdeu força e silencia, quando seria necessário estarmos atentos e fortes?
    E o que tem levado a isso acontecer, mesmo que levantemos a reflexão, mesmo que ouvimos de muitas pessoas a mesma inquietação, mas quedamos paralisados diante dessa constatação?
    Será que as demandas de nosso Ponto de Cultura no local, tomam todo o nosso tempo e energia, que não consigo pensar e agir para além do lugar que estou?
    “pensar globalmente, agir localmente” deveria ser repensado ou repetido?
    Será que a falta de recursos financeiros ou de pessoal, faz com que eu fique parado e somente atendo às atividades de meu grupo?
    Quanto custa hoje, sair da zona de conforto, desafiar a hora e o dia e construir uma proposta de um encontro autogestionado, uma Teia autônoma, uma reunião de planejamento, de avaliação e tomada de posição?
    Ou será que essa coisa de articulação em rede deve ser uma demanda para o governo estadual conduzir? E assim, seguindo a reflexão, achar que ‘a minha preocupação é ter, receber, garantir a “certificação” do meu Ponto de Cultura e pronto. Ponto e pronto.’

DE ONDE SURGIU ESSE MECANISMO, A TAL CERTIFICAÇÃO?
Surgiu da ideia e da apropriação pelo estado nacional de que os Pontos de Cultura são frutos da sua invenção. E não são.
Quando a pessoa acessa ao sítio do MinC/Mapas Culturais, as informações não são tão somente informações, mas entendimentos(pretensiosos, intencionais) sobre o que são os Pontos de Cultura, quem decide e como deve ser os procedimentos para existir. Espia só o que diz lá:

Como obter certificado de Ponto de Cultura?
Para se tornar um Ponto de Cultura reconhecido pelo MinC,
acesse a página https://culturaviva.gov.br e
preencha os formulários de cadastro
com as informações sobre a sua entidade ou coletivo cultural,
sua localização e o histórico de atuação no campo da cultura.

Ter o reconhecimento pelo estado nacional é importante sim, mas tornar isso um instrumento de ‘seleção’, de exclusão do outro e parâmetro do ‘legal’ e do ‘ilegal’ é de um absurdo, que nega a história construída. É digno de indignação!
O aparente trocadilho é proposital, porque a dignidade nos impõe uma recusa desse acinte, qual seja: a limitação do direito e a tentativa de engessamento desse reconhecimento.
Essa apropriação indébita e descabida tem gerado muita confusão:
Uma delas é o que muitos grupos ou coletivos(uns que passaram a existir recentemente, outros que desejam ainda se constituir enquanto grupo)tem nos perguntado: – como fazer para ‘ganhar o certificado de Ponto’? E arremata o motivo: porque queremos ‘virar’ ponto de cultura…
não há nada de errado nisso, óbvio, porque todo grupo ou coletivo cultural em uma comunidade, tem seu começo e suas motivações para existir, mas a questão é situar com evidência, o significado dessa certificação. Ao mesmo tempo que todos nós, Pontos de Cultura de décadas de existência ou que se auto-declarou mês passado, desejamos obter o Certificado, esse instrumento que nada mais é do que um selo de legitimação diante do estado, mas que tem virado uma armadilha, no campo minado da política de cultura.
Quem nasce primeiro: O Certificado ou o Ponto de Cultura?
Temos observado pessoas organizando documentação para obter o Certificado e “criar o Ponto de Cultura” e até mesmo gente correndo pra buscar a ‘certificação’ em virtude dos editais e do acesso a projetos junto aos governos, como mecanismo legal, como um cpf ou rg, uma senha de acesso ao direito por financiamento cultural.
É necessário separar o que é Ponto de Cultura e o movimento Cultura Viva, autônomo, diverso e continental, diferente de ser um Ponto de Cultura com um Certificado, selo instituído pelo estado nacional ou governo local(legítimo também), sem ingerência nem preestabelecimentos para o diálogo e a sua legitimação.
Por exemplo: existe o movimento Cultura Viva(e todo o seu arcabouço que lhe dá substância e confere potência no Brasil e na América Latina) e existe a Lei Cultura Viva(no caso do Brasil, desde 2014). Duas coisas distintas que se complementam. O movimento político, democrático, diverso e autônomo e a Lei Cultura viva(dentre tantas leis da cultura), que reconhece o direito à cultura e normatiza a relação com o estado nacional, em favor das culturas, de suas comunidades, instituições ou coletivos culturais espalhados pelo território nacional.
Para aumentar a confusão, em governos como o da Bahia, o certificado tem sido a condição sini quanon para os Pontos de Cultura receberem benefícios, acessarem aos recurso ou diria, para existir de fato. E pelo que parece, o MinC tem utilizado dessa mesma prerrogativa capenga e ingerente.
Na contramão da história de luta e resistência, de princípios de origem e de sua força criativa, o estado brasileiro tenta acertar o alvo, o cerne, o grão que alimenta os Pontos de Cultura, a sua autonomia, confundindo antigos e novos ponteiros.
A rede de Pontos de Cultura, que não só uma, precisa se levantar!
O primeiro gesto é a quebra do silêncio.

Sumário Santana,
é coordenador do Ponto de Cultura Viola de Bolso. E faz inúmeras tentativas de encontro da rede de pontos de cultura na Bahia, principalmente no território ao qual pertence.
Eunápolis, Bahia


Posted

in

by

Comments

Deixe um comentário